segunda-feira, 6 de julho de 2009



Professores da Rede Pública...



Sinais dos tempos

História da África II

A África Colonial: a perda da soberania nacional,
da iniciativa socioeconômica e a limitação da autonomia cultural

Os "tráficos negreiros" empreendidos pelo Oriente a partir do século VIII, e logo apos pelo Ocidente a partir de 1500, tiveram um impacto cumulativo devastador. As sociedades Africanas foram desarticuladas; os grandes espaços administrativos historicamente constituídos (os impérios) se fragmentaram e, no seu lugar, surgiu uma miríade de minúsculos reinos em constantes guerras entre si. Essa massiva fragmentação e incessantes atomizações enfraqueceram terrivelmente as sociedades Africanas que, pouco a pouco, perderam a capacidade de resistência perante as agressões externas. A grande desarticulação do continente Africano, por sua vez, preparou as bases para outra grande tragédia - a colonização direta pelo Ocidente.

A partir de 1860, a África começou a perder sua independência política com a implantação, em seu território, de todas essas potencias européias que a colonizaram militarmente, país por país e região por região: franceses, britânicos, belgas, portugueses, espanhóis, alemães, holandeses. No confronto militar com o Ocidente, as elites Africanas foram decididamente derrotadas e a Europa assumiu diretamente a conduta política do continente Africano. Somente a Etiópia escaparia a essa humilhante experiência de avassalamento geral.

Em 1884-1885, as potencias ocidentais vencedoras fincaram sua hegemonia total sobre os Africanos como conseqüência da chamada Conferência de Berlim - conclave de nações imperialistas européias, que conduziu à partilha brutal do continente Africano e a sua total colonização, com exceção da Etiópia. Com a Conferência de Berlim, os Africanos perderam a sua soberania nacional, a iniciativa socioeconômica e sofreram uma grave limitação de sua autonomia cultural. Em um período de apenas quarenta anos - entre 1860 e 1900 -, o continente Africano foi esquartejado em uma multidão de "colônias" e "protetorados". Apenas a Etiópia conseguiu manter sua independência mediante uma luta feroz contra os invasores europeus (italianos), que foram derrotados na Batalha de Adwa, em 1896.

Entre 1860 e 1900, todos os países Africanos (exceto a Etiópia) ficaram subjugados e colonizados e os imperialistas europeus desarticularam todas as estruturas básicas da administração autóctone. Com a implantação hegemônica dos valores e usos ocidentais, a África não seria nunca mais o que, até então, tinha sido e os Africanos perderiam uma grande parte da confiança em si, proporcionada pelas próprias culturas autóctones e pelas suas civilizações regionais. As classes dirigentes Africanas do período "Ressurgente" viram subtraídas todas as suas prerrogativas políticas, econômicas e militares e foram avassaladas. As aristocracias Africanas ficaram ou destituídas ou neutralizadas (os chamados "protetorados"); todos os governos autóctones, incluindo aqueles que serviram para viabilizar os "tráficos negreiros", foram liquidados.

Aquelas elites Africanas "parceiras", que anteriormente lucravam através do comercio intenso com o mundo exterior, essencialmente baseado no tráfico de seres humanos, viram-se convertidos em simples lacaios do poder colonial. Derrotados e "marionetizadas", essas elites constituíram, a partir desse momento, a base social sobre a qual o poder colonial iria reconstituir as sociedades Africanas em seu favor e compor novas elites a seu serviço. Assim, criaram-se novas elites Africanas, corruptas e submissas, facilmente manipuláveis. Concretamente, foi isso o que aconteceu, e haverá de se compreender esse processo de colonização de todo o continente, a destruição massiva dos valores Africanos que acarretou, assim como as estruturas e mentalidades de submissão que foram implantadas, para se entender tudo o que se seguiu, até a reconquista da independência Africana nos anos 1950 e 1960 num contexto mundial totalmente desfavorável aos Africanos.

A colonização criou novas redes de "cooperação" entre os ocupantes europeus e a maioria das elites locais, especialmente aquelas que anteriormente tinham intermediado os "tráficos negreiros". A maioria das aristocracias autóctones foram "recuperadas" e postas a serviço do ocupante europeu mediante uma política que os britânicos chamaram de "governo indireto", ou seja, um governo colonial atuando por intermédio de prestigiados dirigentes locais "reconvertidos". Os colonizadores franceses, belgas, italianos, portugueses e espanhóis, no entanto, preferiram implantar sistemas de "governo direto", baseados na "assimilação".

No livro Amkoullel, o Menino Fula (2003), de Amadou Hampâté Bâ, vê-se nitidamente como a colonização francesa criou, artificialmente, as novas elites subservientes Africanas de hoje. O interessante nesse livro é que Hampâté Bâ esta narrando sua própria historia sob a colonização: como ele cresceu dentro de uma família Africana tradicional e como se converteu, progressivamente, em funcionário publico a serviço do ocupante colonial.

Por intermédio do relato de Bâ, têm-se uma ideia precisa de como se deu esse processo em que as potências européias criaram uma nova elite de traidores natos, elite à qual entregariam o poder em 1960, como parte de um processo bem orquestrado chamado descolonização. Com efeito, nesse ano, a maioria dos países do continente Africano "recebeu" sua independência política, sendo o controle de suas sociedades repassado pelo antigo colonizador para as elites Africanas que, em grande medida, surgiram das escolas coloniais. Esse livro é relevante e importante, porque traz uma visão de como esse processo se deu.

A repressão que exigiu a conquista e a implantação do poder da Europa na África se traduz numa significativa queda demográfica em todo o continente. O numero de pessoas dizimadas pelos colonialistas, seja durante as guerras de resistência protagonizadas por uma parte das elites (Samory, Toure, Nzinga, Cetewayo, Menelik II, Behanzin), seja nas operações de "pacificação", foi da ordem de milhões. No período de quatro décadas em que a Europa impôs sua dominação sobre toda a África, a densidade populacional desse continente despencou vertiginosamente: as carnificinas, massacres e "limpezas" das chamadas campanhas de pacificação cobraram a vida de dezenas de milhões de Africanos.

Poucos têm uma ideia do que realmente foi a colonização para os Africanos. Muitos continuam ignorando ou minimizando o fato de que a colonização da África foi um verdadeiro ato de genocídio contra a raça negra. Um genocídio tão extenso quanto o genocídio que foram os tráficos negreiros, por uma parte, e a escravização dos Africanos nas Américas, por outra. Para dar uma ideia das proporções inimagináveis da hecatombe que foi a colonização na África, mencionaremos um só país: o Congo, conquistado pelos belgas em 1884 e colonizado até 1960.

Os belgas deram uma denominação estranha à "sua" colônia no Congo - "Estado Livre do Congo". Este se constituiu no único caso de um país que fora incorporado à potencia colonizadora como propriedade pessoal do Chefe de Estado. O Congo era propriedade do próprio rei Leopoldo II, um dos maiores carniceiros da historia antes de Hitler. A realidade recoberta por esse estatuto "sui generis" foi terrível, alem do que as nossas consciências de hoje podem suportar. Estima-se que, no período de 76 anos de duração da colonização belga (1884-1960), pereceram algo como 25 milhões de Africanos neste único país, como resultado da repressão e dos trabalhos forcados. Assim, temos a seguinte versão oficial dos fatos dada pela enciclopédia virtual Wikipédia, que descreve a situação no Congo imediatamente após a ocupação belga: "Para imprimir as cotas de borracha, a 'Force Publique' (Forca Publica) foi instituída (...). Armados com armas modernas e chicote, Forca publica rotineiramente pegava e torturava reféns (na maioria mulheres), acoitava, estuprava, incinerava aldeias e, acima de tudo, extirpava mãos humanas como troféus, mostrando que, quando as cotas não eram cumpridas, não estavam tendo vontade o suficiente de cumprir. Um oficial branco de baixa patente descreveu uma incursão de punição de uma aldeia que havia protestado. O oficial brando em comando: 'Ordenaram-nos a cortar as cabeças dos homens e as pendurar nas cercas da aldeia, bem como seus membros sexuais, e pendurar as mulheres e crianças em forma de cruz'. Apos ver um íncola morto pela primeira vez, um missionário dinamarquês escreveu: 'O soldado disse: não leve muito a serio. Eles matam a nos' se não levarmos borracha. O comissionário nos prometeu que se tivermos muitas mãos, ele encurtara nosso serviço". Nas palavras de Peter Forbath: 'As cestas de mãos cerradas, postas aos pés do chefe de posto europeus, tornaram0se o símbolo do Estado Livre do Congo. (...) A coleção de mãos se tornou-se um fim em si mesmo. Os soldados da Forca Publica as traziam em vez de borracha; eles até mesmo iam colhê-las em lugar de borracha... Elas se tornaram um tipo de moeda. Elas são usadas para amenizar o déficit das cotas de borracha, substituir... o povo, do qual é exigido trabalhar para as gangues de trabalho forcados; e os soldados da Força Publica tinham seus bônus pagos de acordo com a quantidade de mãos eles coletavam.

Em teoria cada mão direita provava um assassinato judicial. Na pratica, soldados trapaceava, simplesmente cortando a Mao e deixando-a vitima para viver ou morrer. Numerosos sobreviventes relataram que eles viveram alem de um massacre, fingindo-se de mortos, não se movendo nem mesmo quando tinham suas mãos serradas. E esperavam os soldados partirem para então procurar socorro. Estimativas do total das chacinas variam consideravelmente. O relatório famoso de 1904 do diplomata britânico Roger Casemente, aponta para 3 milhos apenas nos 20 anos que o regime de Leopold durou; Forbath, no mínimo, 5 milhões; Adam Hochschild 10 milhões; a Enciclopédia Britânica estima um declínio populacional de 20 ou 30 milhões para 8 milhões".

Ou seja, em 20 anos, num só país - o Congo -, os belgas mataram mais Africanos que aqueles mortos e escravizados durante os três séculos que durou o tráfico negreiro pelo Atlântico e a escravidão racial dos Africanos nas Américas. Se essas foram as baixas humanas apenas para o Congo em vinte anos, as cifras para o resto do continente são, simplesmente, inimagináveis. Em uma palavra, a colonização européia do continente Africano resultou, de fato, em um extermínio dos povos Africanos.

Ainda hoje, existem aqueles ingênuos - ou aqueles que fingem sê-lo - que se perguntam o motivo pelo qual o continente Africano se encontra hoje em situação tão desastrosa em que esta, especialmente se comparado à situação do resto do planeta. Ainda existem aqueles que, negando as evidencias que apontam para os tráficos negreiros e para a colonização da África como sendo rotundos crimes contra a humanidade, negam, inclusive, o caráter fundamentalmente racista dessas investidas da Europa contra os povos negros desse continente. A hemorragia humana que a África conheceu com os diferentes tráficos negreiros, de uma parte, e com a colonização européia de outra, nunca teve paralelos na historia da humanidade. Simplesmente se tratou de um genocídio racial.

Ora, fazendo abstração dessas realidades concretas, os novos revisionistas reciclam as velhas teorias sobre a "inferioridade natural" dos negros - a suposta incapacidade inata desses para se autogovernar e a conseqüente necessidade, para o Ocidente, de salvar os negros de si próprios. A inferioridade racial dos povos de raça negra explicaria o catastrófico estado atual do continente Africano. Mas, os fatos históricos apontam para outra direção.

História da África

A África na História Geral: revisitando os "Tráficos Negreiros"


A África, imenso continente constituído atualmente por cinqüenta e quatro países, tem problemas imensos, na verdade, gigantescos; problemas que surgem de um passado já conhecido; um passado singular, um passado totalmente atípico na historia da Humanidade. É um passado no qual a África se distingue por ter sido o berço de toda a humanidade e das primeiras civilizações mundiais, o lugar onde o ser humano, pela primeira vez, erigiu sociedades baseadas na cooperação solidaria.

De entrada, essa projeção da África entra em conflito com uma visão demonizada, na qual os africanos teriam sempre representado formas inferiores de organização e pensamento. A primeira imagem da África, que surge diante de nos, representa os africanos como eternos escravos. Esse passado, marcado pelos tráficos de escravos, é conhecido; vários séculos dessa atividade, que se reverteram numa hemorragia extraordinária de dezenas de milhões de pessoas que saíram compulsoriamente do continente africano como escravizados, para nunca mais voltar.

Não estamos falando unicamente dos vários séculos que tiveram como via de escoamento o Oceano Atlântico, trajeto este mais recente e que foi perpetrado pelas potencias européias. Afinal, nos - que somos o produto direto desse ultimo trafico - ficamos com uma memória muito curta, uma memória circunstancial desse trafico do qual fomos os produtos. Refiro-me, pois, a todos os tráficos. Saibam que esses "tráficos negreiros" começaram antes do século IX de nossa era, bem antes de os europeus pensarem em sair da Europa. No século XVI, quando se inicia o trafico pelo Atlântico, já havia saído da África para serem escravizados no Oriente Médio e na Ásia Meridional, dezenas de milhos de africanos.

Os descendentes desses tráficos esquecidos se encontram hoje espelhados em todo o Oriente Médio, na Turquia, no Ira, no Paquistão, no Afeganistão, na Índia e no Sri Lanka. Estamos evocando mil e quinhentos anos de intensos tráficos de pessoas negras por mercadores, aventureiros e imperialistas nao-negros. Na Índia, existem atualmente comunidades de descendentes desses primeiros tráficos - Siddis ou Habshis - , que se encontram, hoje, em praticamente todas as partes do país. Com efeito, protagonizaram uma historia extraordinária na Índia e hoje, pela primeira vez, estão voltando os olhos para o continente africano e para essa grande diáspora asiática de origem africana que constituem os afro-asiáticos do Paquistão, do Sri Lanka, da Turquia, do Ira, da Arábia Saudita, do Iêmen e do Iraque.

No século XI, sob a dinastia Abássida, com sede em Bagdá (Iraque), ocorreram as primeiras grandes revoltas e insurreições negras da Historia. As repetidas insurreições das populações afro-árabes, denominadas Zang, faziam tremer as elites do Império Árabe. O maior movimento de revolta por parte dos escravizados de qualquer época aconteceu em 967 e durou ate 980, quando os escravos afro-árabes (Zang) do sul do Iraque se organizaram e criaram um Estado independente dos Zang, sob o comando de Ali Muhamed, dirigente religioso de origem árabe, que se identificou com a causa dos revoltosos negros. Cabe a Ali Muhamed, homem místico de raça branca, o grande mérito de ter se erguido contra o Império Abássida, colocando-se à frente da maior das empreitadas realizadas por escravos na Historia antes da Revolução do Haiti, em 1804.

Vale a pena sublinhar que o mesmo processo de perda da memória histórica aflige as populações afro descendentes da diáspora americana também afeta as diásporas africanas no Oriente Médio (Iraque, Síria, Iêmen, Turquia, Ira, Afeganistão) e da Ásia Meridional (Índia, Paquistão, Sri Lanka). Os Siddis da Índia e os Habshis do Paquistão e Afeganistão desconhecem seu próprio passado e o lugar exato do continente africano, de onde vieram seus ancestrais ha mil e trezentos anos. Essas populações afro-asiáticos não tinham ate pouco tempo o menor conhecimento de seu passado e pouco conheciam sobre o regime escravocrata sob o qual tiveram de viver durante muitos séculos. Ora, a experiência dessas populações leva a um lugar de reflexão que é de suma importância para a determinação das realidades africanas que permitiram esses diferentes tráficos negreiros.

Desde o século VIII, o continente africano já tinha se convertido no foco desses tráficos. Os árabes foram os pioneiros e os principais responsáveis por esses tráficos. Alguns estudiosos estimam que, entre o século IX e XV - quando começa o trafico europeu - o mundo árabe talvez a havia retirado da África entre 18 e 20 milhos de africanos.

Temos de nos debruçar, cada vez mais, sobre os porque dessa realidade. Cabe perguntar por que houve uma intermediação de Estados Africanos traficantes. Parece ser uma digressão, mas não é, pois o conhecimento das realidades que permitiram os tráficos negreiros daquela época, também nos permitir compreender como erigir uma cooperação com a África que garanta que esse tipo de situação nunca mais volte a ocorrer.

Ha mais de mil e trezentos anos, a África passou a figurar como palco de todo o tipo de trafico de seres humanos. Evidentemente, seria simplório pensar que esses tráficos aconteceram simplesmente porque outros vinham ate o continente africano e pegavam as populações nas regiões costeiras como se fossem cocos. Esses tráficos foram bem organizados, como ampla participação de uma parcela das elites dominantes africanas. Havia rotas de trafico de escravos organizadas, rotas tradicionais e históricas: através do Saara, pela parte Ocidental; através do eixo Kanen-Bornou e o Cairo (Egito); através do eixo Cairo-Sudão; e, logo através do eixo da ilha de Zanzibar e de Oman, diretamente ate a Arábia. Quando os árabes finalmente se apoderaram da Península Ibérica, no inicio do século VIII, deu-se inicio a outro eixo pelo qual escoava a população servil africana diretamente do Sudão Ocidental ate a Península Ibérica (Espanha e Portugal), a partir África do Norte. Assim, existia uma numerosa população negra e escravizada na Espanha e em Portugal séculos antes do nascimento de Cristóvão Colombo.

Durante todo o período de domínio árabe na Península Ibérica, isto é, ao longo de quase 800 anos, foram levados para essa região algo em torno de quatro milhões de africanos, segundo as estimativas do pesquisador francês Raymond Mauny (1961). Se somarmos os tráficos árabes entre os séculos VIII e XVI (possivelmente 18-20 milhões de africanos) ao trafico europeu a partir do século XVI (possivelmente 12-15 milhões de africanos), vemos que se tratou de um desmedido contingente de pessoas negociadas, vendidas, compradas, revendidas e, afinal, escravizadas em praticamente doso os países do Oriente Médio, da Ásia Meridional e da Europa, do decurso de um milênio. A África, então, converteu-se em palco de exportação de mão-de-obra escravizada.

Essa é a calamitosa realidade que começa a aflorar das crescentes pesquisas realizadas pelos diversos investigadores que se debruçam sobre esses tráficos. Sem duvida, é complicado projetar cifras exatas, considerando todas as variáveis que talvez nunca poderão convergir, devido à ausência de estatísticas para esses períodos longínquos. Mas, o importante é que essas estimativas dão uma idéia da amplitude do desastre que assolou o continente africano por mais de um milênio e de maneira continua.

Essa situação implicou atores externos com atores internos. Estes últimos articulam um tipo de comercio com o exterior, que lesou os interesses dos povos africanos; ou seja, houve toda uma historia de colaboração política e comercial de certas elites locais (comerciantes e governantes) com o exterior. Essa imbricação se dava mesmo numa situação que não era vantajosa para a África, mas sim, de certo modo, para aquelas elites que obtinham lucro desse tráfico.

Vista desde esta ótica, a identidade histórica das elites vassalas africanas, que hoje ocupam o cenário político, é complicada e problemática, pois deriva de todo o processo multissecular anterior. Embora não seja possível estabelecer uma linha direta que perpasse todas as épocas, culturas e sociedades, podemos inferir que os tráficos negreiros afro-árabes influíram na maneira em que se constituíram as classes dirigentes africanas que, a partir do século XVIII, serviriam de base para a colonização européia e, inclusive, para a situação neocolonial atual. Afinal, uma grande parte das classes dirigentes pré-coloniais comandava Estados, pois a mercadoria humana era uma forma de comercio que tinha se estabelecido entre a África e a Europa, bem como entre a África e o Oriente Médio.

Não iremos adentrar profundamente esse assunto muito complexo, que se constitui um caos para os povos africanos e sobre o qual os historiadores ainda se debruçam. Na realidade, quando se observa o que a Europa estava vendendo para a África e o que a África estava vendendo para a Europa, não se encontra a mínima correspondência. O resultado foi que essa troca desigual garantiu aquilo que Walter Rodney chamou corretamente de "o subdesenvolvimento do continente africano".

Está nítido que foi uma troca desigual, pois, por seu intermédio, a África estava exportando suas forcas vivas e, portanto, subdesenvolvendo-se em relação aas outras regiões do mundo. O capital mais precioso de uma nação e, sem duvida, sua população jovem, sua população criativa, sua população fisicamente sã. E o que recebia o continente africano com exportação de suas forcas vivas? Recebia pura quinquilharia, produtos de consumo produzidos a baixo custo no Oriente Médio ou na Europa, bebidas alcoólicas, bíblias e, claro, cada vez mais... doutrinários do Islã ou missionários.

O que a indústria africana produzia nesses séculos não interessava aos europeus. A África estava produzindo o que os europeus já não precisavam. A indústria de algodão africano, assim como seus tecidos, não era competitiva em relação à indústria de tecidos que os europeus podiam obter da própria Ásia, da Índia e das outras colônias que conquistavam àquela época.

Isso equivale a dizer que toda uma mentalidade de troca desigual, toda uma mentalidade de intercambio que não beneficiava o continente africano e, em vez disso, fundamentalmente, favorecia as "elites exportadoras de gente", tinha fortes raízes fixadas nas realidades do continente bem antes da colonização européia. Ha toda uma mentalidade que se criou nesse continente, produto daquelas elites abastadas que dirigiam os destinos das diferentes nações e que viram no trafico de escravos uma oportunidade de lucrar e acumular riqueza. Na realidade, tratou-se de uma riqueza improdutiva na medida em que nem servia para criar um processo acumulativo baseado em re-investimentos: os produtos que a Europa exportava para seus "parceiros" africanos careciam do menor valor-capital.

Foram essas as condições que contribuíram, ontem, para a queda desse continente e que determinaram a hegemonia mundial, primeiro a do Oriente Médio e, depois, a da Europa. A responsabilidade das elites vassalas africanas pré-coloniais na problemática dos "tráficos negreiros" foi decisiva. Esse fato não pode ser ignorado, negado ou minimizado. Não encarar esse assunto é deixar o caminho livre para que os historiadores revisionistas (THORNTON, John. A África e os Africanos na formação do mundo atlântico. Rio de Janeiro, Campus, 2004) - verdadeiros porta-vozes da manutenção do sistema mundial imperante e da hegemonia do chamado Primeiro Mundo - encham as bibliotecas com obras que minimizam e desculpam o crime contra a humanidade que constituíram esses tráficos e a própria escravidão racial dos povos negros.

Estamos obrigados a encarar esse assunto porque, hoje, somos nós testemunhas do protagonismo das mesmas elites compradoras na sua relação como exterior. Elas entregam ao exterior, com uma tranqüilidade criminal impressionante - e a baixo preço - as matérias-primas do subsolo africano, tal como outrora entregaram, e por pouca coisa, a mão-de-obra africana que foi escravizada no Oriente Médio (Arábia, Iêmen, Síria, Iraque, Turquia, Ira, Afeganistão), no sul do continente asiático (Índia, Paquistão, Sri Lanka) e nas Américas (do Sul, Caribe e do Norte). Assim, as elites neocoloniais contemporâneas simbolizam, de maneira concreta, a continuidade das relações exteriores desiguais, em detrimento total do continente africano, que tem causado tamanho dano aos povos dessa região do mundo.

Temos de voltar o olhar para essas circunstancias históricas a fim de reconhecer os caminhos pelos quais se perpetua essa relação comercial desigual. Do mesmo modo, devemos nos atentar para a identificação da continuidade da própria mentalidade surgida de praticas baseadas nessa troca desigual, comprometida com interesses exógenos e a despeito dos interesses dos próprios povos africanos. Dito de modo direto: tanto política como ideologicamente, a estirpe constituída pelas atuais elites subservientes africanas, representa um elemento de franca continuidade com aquelas praticas comerciais nocivas e desumanas que vigoraram durante o período pré-colonial.

Não seria historicamente verídico argüir que todas as sociedades africanas, ou mesmo todas as classes sociais que compunham as elites dominantes em cada sociedade, se envolveram com os tráficos negreiros. Haveria que analisar cada caso, segundo as épocas e situações, e também segundo o grau de envolvimento com o comercio extracontinental. Mesmo assim, como apontado anteriormente, o envolvimento nos tráficos negreiros baseava-se em realidades sociais intrínsecas à experiência das sociedades humanas como um todo. Essas realidades orientam, que, a partir do momento em que a vida em sociedade permite a certas camadas sociais exercer relações de exploração, o ser humano se lança na busca do lucro a qualquer custo. Foi o caso de muitas das elites africanas pré-coloniais dos períodos Neoclássico e, sobretudo, Ressurgente, que cada vez articulam parcerias nocivas para seus povos com atores imperialistas do exterior, os quais, até mesmo, tinham o maio desprezo social para com seus próprios sócios africanos.

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Neoclássico e Ressurgente: "Atentos à longa continuidade na ocupação humana do solo africano (três milhões de anos para cá), parece-nos apropriado periodicizar a historiografia africana nos últimos dez milênios segundo cinco grandes períodos, respectivamente denominados como Clássico (5000 a.C., - 200 d.C.), Neoclássico (200 - 1500), Ressurgente (1500 - 1870), Colonial (1870 - 1960) e Contemporâneo (1960 - aos dias atuais).

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MOORE, Carlos. A ÁFRICA QUE INCOMODA: sobre a problematizaçao do legado africano no quotidiano brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2008 (Coleção Repensando a África, volume 1). 224 p. PP 12-24.

"Olhai para mim, e sereis salvos, vós, todos os termos da terra; porque eu sou Deus, e não há outro" (Is 45:22a)